Comportamento animal: gatos podem viver [bem] dentro de casa?

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Gatos têm se tornado cada vez mais populares e, com isso, cresce também o debate em torno da chamada “criação indoor”, ou seja, estritamente dentro de casa. A pergunta é: isso é saudável para esses animais? Devo privar meu gato de dar suas “voltinhas”? Não é do espírito dos gatos viverem livres “na natureza”?

Este texto não tem a menor intenção de ditar regras sobre como você deve ou não criar seu animal de estimação. Mas não há como negar: se o lado de dentro pode fazer algum mal, o lado de fora também não deixa barato. E se você ainda opta por manter seus animais numa vida semi-livre porque realmente acredita que isso é INDISPENSÁVEL para o bem-estar deles, talvez você não esteja ciente das últimas pesquisas científicas desenvolvidas há mais de 30 anos.

Afinal de contas, o que os gatos tanto procuram nas ruas? A resposta é simples: presas. Pesquisas de campo comprovaram que os gatos passam a maior parte do tempo caçando. Isso explica o porquê de mesmo alguns gatos castrados ainda desejarem tanto as ruas. Mesmo sendo alimentados diariamente e ainda que não comam os produtos de suas empreitadas (muitos inclusive chegam a leva-los inteiros para casa), o instinto de caça destes animais não difere EM UMA VÍRGULA de seus ancestrais selvagens; até porque o gato doméstico (Felis silvestris catus) sequer ocupa um posto isolado nas classificações taxonômicas, exercendo ainda o papel de mera subespécie do gato selvagem africano (Felis silvestris).

No entanto, as semelhanças entre ambos param por aí. Se a ideia de viver solto “na natureza” vale para o gato selvagem, isso nem de longe se aplica ao gato doméstico. E ainda que fosse o caso, isso não seria, obrigatoriamente, sinônimo de bem-estar. Brian Trevor Poole, pesquisador do comportamento animal e autor do livro Animal Welfare (sem tradução para o português), explica que nem sempre o comportamento natural está aliado ao bem-estar animal, já que os riscos da luta pela sobrevivência podem ser fatais. Se isso é verdade para o gato selvagem, quanto mais para os que são criados nas cidades, onde os resultados da civilização humana potencializaram estes riscos. Desde as disputas por território com outros gatos, até a contração de doenças virais e bacterianas, transmissíveis ou não a humanos, além dos ataques de outros animais ou acidentes e maus-tratos impingidos por pessoas mal-intencionadas, são INÚMERAS as possibilidades de seu gato voltar seriamente ferido ou doente para casa, ou simplesmente não voltar nunca mais. Por essas e outras, que desde 2001 a orientação da Associação Americana de Médicos Veterinários é contundente: “Encorajamos fortemente os tutores de gatos domésticos em áreas urbanas e suburbanas a mantê-los indoors”.

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O dilema enfrentado pelos gateiros de plantão sobre seguir ou não a orientação dos profissionais consiste no receio de que o confinamento possa fazer mal aos seus animais. E, de fato, não é sem fundamento. Se o ambiente externo traz uma série de danos físicos, o etologista britânico Jonathan Balcombe já advertia sobre os danos neurológicos que o confinamento pode causar aos animais. No caso dos gatos, eles se manifestam na inibição de comportamentos normais da espécie. O gato pode ficar entediado, apático, dormindo AINDA mais do que os gatos usualmente dormem, fazer as necessidades fora da caixa sanitária (o TERROR dos tutores), ou ainda pior: pode tornar-se arisco e consequentemente agressivo, desenvolver estereotipias – comportamentos repetitivos sem senso prático algum – além de transtornos físicos, como a obesidade – que por si só já abre portas para diversas doenças – e cistite idiopática felina.

Então, o que fazer? Devo manter meus animais soltos, mesmo com todos os riscos? Calma. Na verdade, estes efeitos adversos do confinamento já preocupam os diretores de biotérios e CCZ’s há um bom tempo. Isso porque comprometem tanto os resultados das pesquisas onde gatos ainda são utilizados como modelos, quanto condenam esses animais a anos e anos num gatil esperando por adoção. Como nesses locais a vida semi-livre NÃO é uma opção, tornou-se a preocupação dos estudiosos criar medidas que erradicassem ou minimizassem estes efeitos. E após alguns estudos, eles perceberam que não é o ambiente em si que faz a diferença, mas os estímulos que os animais recebem nesse ambiente. Vale lembrar que gatos voluntariamente começaram a ficar perto de humanos uma vez que a agricultura foi estabelecida e roedores começaram a aparecer. E mesmo os gatos domésticos “saideiros” não costumam ultrapassar um raio de 100m da residência familiar. Ou seja, eles não se importam de viver num espaço restrito, desde que seus instintos sejam estimulados neste espaço. Como afirma a veterinária Ellen C. Jongman em seu artigo “Adaptation to Domestic Cats to Confinement”, “a qualidade do espaço que abriga o animal merece mais atenção que seu tamanho”.

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As técnicas de enriquecimento ambiental para animais confinados já têm rendido ótimos resultados não somente em gatos, como em diversas outras espécies. Num outro artigo publicado pela Universidade Técnica de Lisboa intitulado “O Enriquecimento Ambiental como Estratégia de Tratamento e Prevenção de Cistite Idiopática Felina”, a veterinária Ana Margarida Pignateli menciona, dentre outros resultados importantes com perus e outros animais, “redução dos prejuízos na memória de trabalho em ratos idosos; aumento nos níveis neurotróficos em cérebros de roedores; estimulação de renovação celular hipocampal e prevenção de morte dessas células, além de atenuação de distúrbios psiquiátricos em vida adulta”. Além disso, constatou-se que os roedores criados em ambientes enriquecidos respondiam a estímulos que simplesmente “passavam batido” em ratos criados em ambientes comuns. Ou seja: num ambiente devidamente enriquecido, eles permaneciam neurologicamente saudáveis, a despeito do confinamento.

É um fato que se a implantação de medidas que tornem o ambiente mais complexo para os bichanos já tem funcionado muito bem em biotérios e CCZ’s (veja a prática sendo utilizada em um CCZ neste artigo), quanto mais em casas de família onde o único motivo para a presença destes animais é o afeto. Desde a verticalização de ambientes até a instalação de prateleiras, além de túneis, refúgios em níveis baixos e elevados, brinquedos que estimulem a caça e diversos outros itens que seus recursos ou criatividade permitirem – sem dispensar, é claro, a interação com humanos e se possível, com outros animais –, tutores do mundo inteiro têm atestado o que para a ciência não é mais novidade: só se sente a necessidade de buscar fora de casa o que não se encontra dentro dela. Isso vale para os humanos. E para os gatos, também.

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Artigos: O enriquecimento ambiental como estratégia  /  Adaptation of domestic cats to confinement
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