Parece mentira, mas os danos aos veículos ainda são a única preocupação quando o assunto é atropelamento de animais de rua em nosso país

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Em fevereiro de 2016, Lobo, um cão comunitário que vive nos arredores dos quiosques da Praia do Itararé, em São Vicente, litoral paulista, foi violentamente esfaqueado no pescoço por um morador de rua.  Felizmente, o cão foi socorrido e sobreviveu. Mas o detalhe que chama a atenção neste fato foi o destacado pela advogada Natalia Macedo Sanzovo, que providencialmente passava por perto e salvou a vida do animal.  Estarrecida, ela descreve a cena vista ao chegar ao local. O cão já ferido, amarrado a um coqueiro, enquanto a população linchava o seu agressor.  “O que mais me impressionou foi a raiva do pessoal. Muitos diziam que o morador de rua tinha que morrer (…) Mas, em nenhum momento, pensaram em resgatar o cachorro”.

Às pessoas que ainda conservam sua sensibilidade, situações como essa com certeza chocam. Mas o que choca ainda mais é perceber que os princípios que movem nossa legislação não são muito diferentes do que move as massas. É certo que graças, principalmente, aos esforços de grupos ativistas pelo direito animal, já evoluímos alguma coisa neste aspecto e maus-tratos a animais hoje já são considerados crimes, com multa e possibilidade de reclusão. Mas até então, a lei AINDA só se preocupa em punir o agressor. E se você parar para pensar em situações bem corriqueiras, como as de animais que são atropelados diariamente em nossos centros urbanos, a coisa fica mais grave e você verá que ainda falta MUITO para chegarmos à justiça plena no trato aos seres de outras espécies.

Já falamos aqui sobre o atropelamento de animais silvestres e do quanto isso influi no índice de espécies em extinção (se você não leu, veja a matéria aqui). Mas o que estamos falando hoje é de algo mais próximo de você, meu amigo condutor. Pense comigo: se você, acidentalmente, atropela alguém, o que faz? Se for um cidadão consciente, para o veículo e liga para a Emergência. E a lei, nesse aspecto, pensou em tudo. A despeito dos problemas, temos um sistema público para atender pessoas nesses casos. E o DPVAT, seguro obrigatório a todo proprietário de veículos, arca com os custos de possíveis indenizações à vítima pelas despesas médicas. Mas, e se esta, no caso, for um animal?

Se ele tiver dono, menos mal. Ele será obrigado a arcar com todos os custos. Não, não estou falando veterinários. Estou falando do carro. Qualquer arranhão no veículo fica sob responsabilidade dele, já que, tecnicamente, ele é o culpado pelo animal estar circulando solto pelas ruas, e segundo o Código Civil de 1916, “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência (…) causar prejuízo à outrem, fica obrigado a reparar o dano.” Até aí, perfeito. O cão será tratado, e você, restituído. Mas, e se for um animal abandonado? Como é que fica?

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Provavelmente, abandonado à própria sorte até a morte. Esse é o destino da maior parte dos animais que cruzam o caminho de um veículo nas vias públicas. Mas aí você se pergunta: “E a lei de omissão de socorro?” Veja por si mesmo. O Artigo 135 do Código Penal prevê pena para quem “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.” Percebeu? Diferentemente de outros países, que tratam esse tipo de ocorrência DA MESMA MANEIRA, seja com animais, seja com humanos, a lei brasileira especifica PESSOAS, o que não configura como crime a omissão de socorro se a vítima for um animal, o que faz com que muitas autoridades considerem a ajuda, nesse caso, como “optativa”. Você só ajuda se quiser, mentalidade essa que fica evidente quando se percebe que políticas públicas de atendimento animal praticamente INEXISTEM em nosso país. E levando em consideração que serviços dessa ordem nem sempre são muito acessíveis, não precisa ser muito vivido para saber como essa história geralmente termina, não é?

Fica claro que a consciência popular, nesse caso, apenas reflete nossa própria situação legislativa. A única preocupação está nas pessoas, no veículo e em achar o responsável para puni-lo, sendo que para o animal ferido, esses fatores pouco importam.  Mas o problema está justamente aí. É exatamente esse último requisito tão importante para o “homem civilizado” que o animal de rua não preenche. Aparentemente, não há ninguém em quem pôr a culpa. E se não há a quem culpar, então fiquemos assim: eu com meu carro amassado, ele com seus ferimentos. Se está na rua, é de todo mundo, certo? Talvez. Mas às vezes, essa é apenas a maneira “mais bonita” de dizer que ele, na verdade, não é de ninguém.

Fontes: g1.globo.cachorrogatopenalemresumo    Imagens: Reprodução/animal/ibanez